O “Tone from the middle” na construção da Cultura de Compliance
Se “a virtude está no meio”, a plena eficiência dos
programas de Compliance também está.
Muito se fala que a base estrutural de um Programa de Compliance efetivo é o apoio inequívoco da alta administração, mais conhecido pela expressão Tone from the top. Porém, precisamos também prestar atenção no Tone from the middle, pois é nesse nível que o sistema é, de fato, operacionalizado.
Tone from the top refere o indispensável compromisso da alta gestão com a efetividade do Programa, não somente pelas palavras, mas pela tomada de atitudes e decisões de maneira ética, uma espécie de “walk the talk”. O Tone from the top se concretiza por gestos, como na presença dos dirigentes nos treinamentos, no envio de e-mails periódicos e de vídeos de incentivo aos colaboradores e na transparência quanto ao modo como a organização reage à violação dos valores da organização – tudo isso são formas adequadas para irradiar o exemplo que “vem de cima”. Por isso o Tone from the top é considerado um dos pilares dos programas de compliance e, segundo o art. 42 do Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei Anticorrupção – Lei 12.846/2013, representa um dos parâmetros essenciais para avaliação da existência e da efetividade do Programa de Integridade. Também os relatórios da CGU e do Instituto Pró-Ética valorizam o comprometimento da alta direção como o primeiro e principal dos cinco pilares de avaliação dos programas de integridade. Releva por fim mencionar a ISO 37.301, documento de suma relevância que regula os requisitos de um Sistema de Gestão de Compliance, e lista uma série de condutas que irão assegurar que o Programa seja efetivo e alcance os resultados pretendidos, citando como o mais importante fundamento o apoio ativo e visível da alta liderança.
O fato é que o aperfeiçoamento do Compliance deve ser buscado como um todo e por todos (PESCARMONA et alli, 2020, p. 36). Por isso é estranho que nenhum daqueles documentos normativos faça qualquer referência à expressão Tone from the middle – daí a importância em explorarmos esse ponto, já que é no middle que as atividades da empresa efetivamente acontecem. Com efeito, operacionalizar o Tone at and from the top exige estratégias que atentem à realidade em grande parte das organizações: a cultura da liderança se concentra nos 5% do topo, mas a maior parte da execução das atividades-fim da empresa é levada a efeito pelos outros 95% (FOX, Thomas, 2018, p. 129). Principalmente em grandes organizações, por vezes é inviável à alta administração, fixada em diversos Estados ou Países, a interação com o nível básico ou com o empregado médio que enfrenta riscos de comportamentos non-compliant todos os dias. Nesses casos, é a liderança média (as gerências) que deve desempenhar um papel de representatividade e aculturamento de seus liderados, transmitindo consistentemente uma clara mensagem, palavras e gestos, de que a organização cumprirá com as suas obrigações de compliance e não irá tolerar condutas ilícitas e antiéticas. Precisamente aí está a importância do chamado “Tone from the middle” como uma estratégia mais efetiva para irradiar a cultura de compliance em uma organização.
De maneira efetiva, é com o gerente, o supervisor ou o departamento de Recursos Humanos que os colaboradores têm o convívio regular na jornada de trabalho, e por isso são eles os principais responsáveis por influenciar condutas éticas e íntegras, de acordo com os valores da organização (HAYES et alli, “What’s the tone at the very top? The role of boards in overseeing ethics and compliance” Disponível em https://lrn.com/, p. 20). Cabe às gerências o papel de mostrar o que a empresa espera em termos de comportamento, para que a equipe não tenha dúvidas no momento da tomada da decisão e não tenha receio em relatar um problema ou suspeita de não conformidade. Além disso, percebe-se nas empresas mudanças no modo de exercício do poder, em que a expressão “new power” ganha relevo para explorar a dinâmica de lideranças nas “pontas” da organização – por ex., no relacionamento com clientes e fornecedores –, um movimento que projeta a posição do compliance também para as linhas de frente da empresa. Essa transição do “old power” (controle e liderança concentrados) para o “new power” (ações coordenadas dos múltiplos sujeitos envolvidos) se funda em aspectos que caracterizam a vida moderna, tais como participação, compartilhamento, proatividade, financiamento, produtividade e co-propriedade (co-ownership). Segundo Heimans e Timms, precursores do conceito, o fenômeno do “new power” afetará completamente o modo como a liderança é exercida nas empresas a partir da contribuição ativa de cada indivíduo na criação dos conceitos, num movimento que pode ajudar muito o compliance a atingir todos os cantos da organização (Understanding New Power. Harvard Business Review, Dec. 2014).
Em pesquisa junto à Harvard Business School que virou best-seller na comunidade do Compliance, o Professor Eugene Soltes afirma que a decisão entre uma conduta ética ou antiética pode ser atribuída a uma questão cultural da organização, assim definida como as regras tácitas que determinam o comportamento dos indivíduos (SOLTES, Why They Do It: inside the mind of the white-collar criminal, 2016, kindle ed.). Para ele, no momento de decidir, a resposta que atinge imediatamente um colaborador como o “certo” é um produto do ambiente ao qual ele pertence e se identifica. Sendo assim, deve-se valorizar o papel das gerências, que estão mais próximas dos numerosos colaboradores da organização, para que possam, mediante treinamento e capacitação, personificar os valores da empresa e o foco na conformidade – e isso é algo que vai muito além de cobrar resultados e reprimir condutas ímprobas e antiéticas por parte dos seus subordinados. Nesse ponto, exige-se investimento nos fins e principalmente nos meios, ou cairemos na contradição apontada por Clóvis de Barros Filho, aludindo às organizações que trazem em seus banners corporativos a expressão ‘foco no resultado’ como um dos seus valores – e sabemos que muitas o fazem –, porém não resistem a uma análise criteriosa de conceitos, considerando princípios e valores éticos. Seu valioso insight está em apontar que cabe à liderança transmitir a ideia de que não se pode conceber o fato de o resultado ser o único critério que avalia condutas, sob pena de abandono dos preceitos éticos e de consequências negativas para a reputação da organização[3]. É uma outra forma de pensar que os fins nem sempre justificam os meios.
Além disso, sabemos que a implementação de um Programa de Compliance se ampara em muitas regras internas, tanto do Código de Ética quanto das políticas que o suportam; porém, também sabemos que a mera divulgação de documentos normativos não provoca, por si só, as alterações culturais suficientes (HENCSEY, Antonio Carlos at ali, 2020, p. 52). Se se deseja que o Programa de Compliance não permaneça apenas na formalidade e seja vivido no dia a dia da empresa, as gerências (middle-management) serão fundamentais na função de comunicação do programa e, como estratégia para a efetividade desta comunicação, devem inclusive assumir a responsabilidade pela presença de seus liderados nos treinamentos, pois sem isso a cultura de compliance não será incorporada em toda a organização.
Já em suas linhas linha introdutórias, a ISO 37.301, que regula os sistemas de gestão de compliance, recomenda que as “organizações que almejam ser bem-sucedidas a longo prazo precisam estabelecer e manter uma cultura de compliance considerando as necessidades e expectativas das partes interessadas”. Pois o desafio em desenvolver a cultura de compliance ou cultura de integridade está em tornar a ética e os valores da organização algo orgânico, naturalmente evidentes, de modo a expressar que as estruturas abstratamente desenvolvidas se concretizam por meio de atitudes, comportamentos e relações com as partes interessadas internas e externas – ou seja, empregados, alta administração, clientes, fornecedores, autoridades. Culturas fortes têm em comum dois elementos: um alto nível de concordância sobre o que é valorizado na organização e um alto nível de intensidade em relação àqueles valores, que se projetam em tudo o que se faz dentro da empresa.
Estabelecer um Código de Conduta é fácil; mas estabelecer uma cultura organizacional forte em compliance, indispensável ao funcionamento do Programa, não é algo que acontece da noite para o dia (PEREIRA, Ana Flávia Azevedo et alli, Cultura Organizacional em Compliance, 2021, Thompson Reuters, eletrônico). São necessários anos de investimento e ações contínuas das empresas para vislumbrar resultados positivos conquistados pela mudança cultural percebida por todas as esferas da organização. A comunicação feita por uma liderança média presente e acessível é protagonista, seja mostrando ao colaborador os riscos do negócio, seja por meio do exemplo de comportamento.
Não temos dúvidas de que esse protagonismo das gerências será considerado um indicador de performance do compliance. Em alguns casos, já é: o Guia de Avaliação de Programas de Compliance Corporativos da Divisão Criminal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (“DOJ“)[4], o qual prevê parâmetros mínimos para a avaliação dos programas de integridade corporativos em negociações de acordos de resolução penal, destaca que a conformidade das organizações é mensurada através da busca por informações de todos os níveis de colaboradores para verificar a percepção do compromisso da gerência sênior e média com a cultura de compliance. Diante disso, manter o tone at the top não será suficiente e o tone at the middle terá um relevante papel a cumprir.
O apoio e o exemplo da alta administração são fundamentais para o início e a manutenção de um Programa de Compliance compromissado com a ética, a conformidade e a integridade. Porém, o Compliance se torna sustentável ao ser incorporado na cultura da organização e no comportamento e na atitude das pessoas que trabalham nela. ‘Tom do meio’ é tão importante quanto ‘tom do topo’: o papel de priorizar o foco em internalizar a cultura por toda a empresa cabe, de forma indispensável, à média gerência, que deve ser treinada e capacitada para aderir e transmitir os princípios e valores éticos da organização aos seus liderados. Se “a virtude está no meio”, como preconizava Aristóteles, a plena eficiência dos programas de Compliance também está.
14 dezembro de 2021
Ana Paula O. Ávila[1]
Caroline Sturmer Correa[2]
[1] Sócia Coordenadora da área de Compliance do Silveiro Advogados. Mestre e Doutora em Direito pela UFRGS; Mestre em Global Rule of Law pela Universidade de Genova, Itália; Formação em Gestão de Crise pelo MIT, Estados Unidos.
[2] Sócia da Área de Compliance do Silveiro Advogados. Especialista em Compliance pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Especialista em Direito e Processo do Trabalho, pela PUC/RS. Advogada certificada pela EXIN em Privacy and Data Protection Essentials e Information Security Foundation based on ISO/IEC 27001.
[3] Clóvis de Barros Filho. O resultado do foco no resultado. https://www.youtube.com/watch?v=SUr9rcZulWE. Acesso em 25/10/2021
[4] DOJ. Justice Manual. 2019. Disponível em: https://www.justice.gov/criminal-fraud/page/file/937501/download. Acesso em 23/10/2021.